terça-feira, 14 de maio de 2019

fumou devagar


fumou devagar
o cigarro que tinha viciado aos dedos
sentado do outro lado da esplanada
sentado do outro lado da árvore
sentado do outro lado do caminho por onde passa o empregado
sentado do outro lado da luz pendurada no toldo
sentado do outro lado do velho a jantar sozinho
sentado do outro lado do meu bife a arrefecer enquanto te descrevo
e oxalá estivesses mesmo atrás do meu bife
que ao apetite mantinha-o ocupado com ele
o bife
enquanto a ti
que és ele
mantinha-te ocupado comigo
que entretanto já tenho meio bife comido
e não me parece que o apetite fique por aí
talvez prefira sobre a mesa
em espessas babas de camelo
que lembra a delícia dos teus olhos
irrequietos
à espera de ver os meus
outra vez


fumou devagar
o cigarro inclinado nos dedos
com as costas
colossalmente encostadas
contra a coluna
e no corpo só a armadura de luzes e fumo
e no corpo só a t-shirt rasgada pela barriga
e no corpo só a cerveja peganhenta aos pelos dos braços
e no corpo só o cheiro peganhento aos pelos da barba
no teu corpo
o umbigo
e o pescoço em oblíquas tatuagens
e a pronúncia que te agarra a casa
e o cabelo
que amarras aos teus punhos também
entregues
antes de tos pedir.

11 abril 2019 : 00.59

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

igreja

dizem que estes lugares são como um intercomunicador directo ao Céu
uso pouco
têm tectos muito longe da linha do olhar
suportados por colunas de silêncio, tosse e expiações
por vezes há reminiscências de vidas enfeitadas
exemplos a seguir, dizem eles
porque da vida só se pode esperar dor e ingratidão
só assim a salvação, dizem eles
que na verdade é no fim de tudo, também dizem eles
como se não houvesse espaço para a plenitude durante todo o tempo que se respira
por isso ajoelho-me à espera
assim as preces ouvem-se melhor, aconselham eles
e grito tudo o que mais quero:
uma casa com renda justa
um emprego em que me paguem pelo que trabalho
saúde ao invés das maleitas e doenças
família próxima para que não se esfrie o coração
não deu tempo para ser altruísta
agarram-me pelos braços e pelo pescoço
para me calarem, gritaram eles
tudo isso faz parte do caminho a ter
tivesse eu ido para padre
tinha casa e comida
livros e Poesia
menos quecas mais bebida
os pés seriam igualmente gelados
e as mãos
as mãos estariam limpas, mentem eles
fui de rastos mas sem cruz
e sentei-me à porta da casa Dele
pedi na mesma
pedi muito
pedi com toda a força para que a Luz fosse das que apagam o escuro dos dias
nos olhos cresceram cristais
ceguei
para que vejas melhor, disse Ele

17 Janeiro 2018 : 22.41

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

um estrondo no arranque estuporoso do dia
e o brilho breve da manhã por entre as copas das árvores e dos telhados
nenhuma brisa de inverno nem chuva
só a seca a estender-se desde o epicentro do meu corpo
há um grito antes do silêncio
depois só a aridez das palavras
na cabeça
na boca
nas mãos abertas e impacientes

a espera como compromisso da minha vulnerabilidade

20 Novembro 2017 : 12.20

quarta-feira, 14 de junho de 2017

da sublimação do ideal

A APRECIAÇÃO DO CORPO DIVIDE-SE EM QUATRO PARTES, NEM SEMPRE COM A SEGUINTE ORDEM DE ENCANTO, MAS QUASE SEMPRE POR ESTA ORDEM DE APROXIMAÇÃO:



1. as pestanas as sobrancelhas o olhar
o olho é um órgão capaz de nos enfiar na cabeça as maiores maravilhas por maior que seja o espectro da sua podridão-esplendor mas de nada lhe serve se não aliciar a maravilha que é olhar de frente a direito a enfiar-se até ao fundo de outra cabeça que não a nossa para repararmos que o olho é enfeitado com delicados cílios a estenderem-se e a arrebitar (não em demasia nem demasiado curtos porque fica feio) a apontar os seus fios ebânicos para a moldura sobrancelhal a definir num rasgo negro uma sombra opaca que sublinha ao contrário a intenção do olhar absoluto a entrar em ti e a esclarecer.

2. a voz os lábios o sotaque
a garganta é um órgão também capaz de muitas maravilhas  engolir deglutir engasgar entalar asfixiar vomitar infectar falar cantar encantar enganar imitar calar emudecer apodrecer  que independentemente do seu tamanho (nem muito estreitas nem muito curtas mas sem grandes saliências) é capaz de nos sintonizar na sua frequência e fazer do seu timbre todos os arrepios nas coxas e costas e cotovelos para que se da boca florir uns lábios mais cheios mais sumarentos mais que a convidar a decorar todas as curvas que faz para modelar as palavras num sopro mais ou menos carregado de identidade original a pronúncia do primeiro choro a extensão milenar da homofonia.

3. as pernas as mãos a robustez
os membros inferiores superiores e suas extremidades (os pés não contam por estarem demasiado afastados da ponta superior do corpo e por conseguinte terem menor beleza apesar de aguentarem com o corpo todo ao peito coitados) são decisivos a marcar qualquer intenção num passo num abraço num murraço num amasso num descompasso num embaraço num espaço qualquer desde que a sua força seja sempre contida sem exageros de nenhum dos extremos e que o impacto da sua robustez seja como maciças erecções adolescentes a contracção em carne viva a ser só o brilho a escorrer nos sudoréticos contornos.

4. a vontade a verdade a liberdade
ao contrário da vontade a verdade deverá ser sempre sempre exposta que tal como a liberdade não deverá ser contida por nenhuma razão apenas a vontade pode ter limites oblíquos máscaras intensificadores que atenuam ou enaltecem a direcção que será suficientemente simbiótica até ao automatismo improvisado enquanto que as outras duas nada têm que ver com início começo partida porque cada uma destas virtudes em uníssono selará o único pacto para o conhecimento transversal do que cada um de nós é individualmente por dentro do nosso corpo através da sua superfície e mesmo em tudo o que projectados para fora dele.

13 Junho 2017 : 19.48 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

que a falta de honestidade
seja mais brilhante
mais verdade
mas se houver na franqueza mentira
que seja feita a sua vontade
que seja a língua armadilha
os dentes mais
que muros de sorrisos
filtros fingidos
só brilhos ressequidos
no acreditar do esplendor
uma facada nos olhos
uma ferida
uma dor.

15 janeiro 2017 : 03.44

um glaciar verde-lima
congelado ao céu vespertino
e só uma coroa azul-celeste
a ser mais do que se vê
aviões intrusos
a pairar sobre manadas de nuvens
brutas e opacas
num cortejo longínquo
em trovoadas de silêncio
só brilho
só luz
o verdadeiro grito da criação
o cuspe que nos moldou o corpo
em pedras preciosas
numa caixa de betão

iluminam-se as lágrimas celestiais
é o tempo da claridade obscura
o amor pelo medo
gritos   ternura
acendemos o escuro da rua
com invejosos letreiros de néon
a avisar que estamos aqui
a passear ambulâncias histéricas
outro aviso de que estamos aqui
que nos deixaram sozinhos
com monstruosas maravilhas
tentação   descontrolo
o vício pelo apodrecimento do espírito
a não-vontade em ser melhor

Noite de frio, com luas escuras,
minha Mãe desde o Antes
acende-lhes as suas mãos-estrelas
acorda-lhes a razão
porque antes ter tino
do que um coração bolorento
a metastizar corpo fora
a parasitar outros corpos também
que se alinham em dissimuladas marchas
para chegarem onde lhes convém
soam alarmes
trompetes   foguetes
derrubam-se pessoas
como paredes
não há muros que se aguentem de pé
vão de cabeça
não vão pela fé

emulsionam-se virtudes
que expandem para ocupar
tapam-nos os olhos
e a verdade
outra forma de cegar
somos só isto
carne em andamento
rotinas sem alimento
esquecemos que podemos ser mais
que nos podemos abraçar mais
e olharmo-nos mais
para percebermos que apesar do reflexo
somos todos iguais
duas mãos uma boca
é o que basta para alastrar o lume
que se retém nos corpos
mortais

medula   veneno
tudo circula quando há medo
neste mundo pustulento
resta saber quem o quer tratar
olhem para dentro
e que morra em paz quem não se quer importar.

9 fevereiro 2017 : 17.56

felicidade para quem parte em direcção ao Sol
haverá sempre luz
haverá sempre um incêndio por cima do teu marmóreo corpo
reflexo permanente da escuridão abissal por cima de ti
faz-te luz
relâmpago
faísca   incandescência
por mais frio que seja o teu azul da manhã
deixa que haja brilho entre os fragmentos de uma onda contra a costa
faz da espuma e do sal um arco, uma porta sempre aberta
e deixa-me ser contigo
numa eternidade de calor e claridade
suspenso apenas pelo teu ruído de quem se quebra em pedaços
permanentemente.

 24 dezembro 2016 : 18.00

recado

NÃO VALES O FILHO DA PUTA DO ESFORÇO PARA IR DE MOTA ATRÁS DE TI PORQUE NÃO VALES O FILHO DA PUTA DO ESFORÇO QUE OS MEUS OLHOS FAZEM AO DECORAR-TE PORQUE DURANTE TODO O TEMPO DESSE FILHO DA PUTA DE ESFORÇO EU VOU CEDENDO VIOLENTAMENTE À DEPENDÊNCIA DO CORAÇÃO QUE NÃO FAZ O MÍNIMO DO FILHO DA PUTA DE ESFORÇO PARA ESPESSAR TODA A SUA ARMADURA DE CARNE VIVA FRÁGIL E ESSENCIAL PARA QUE TODO O FILHO DA PUTA DE ESFORÇO SEJA SENTIDO COM OUTRA RAZÃO QUE É A VONTADE MAIS QUE PERFEITA PARA ACABAR COM TODO O ESFORÇO MESMO QUE SE MANTENHA O FILHO DA PUTA.

23 setembro 2016 : 00.38

o teu gosto sobe à boca
com atraso
e prolonga-se
um fiozinho a azedo - muito suave
a saber a silêncio a tempo demais
a ferro oxidado a escorrer-me pelos dentes
ao corpo ainda quente
e ao calor por dentro do corpo

de que foram feitos os meus olhos
e o meu coração
para que as mãos só soubessem ser tuas
por mais certezas de que o mundo andava
ao contrário de ti e de mim
apesar do decalque de mil e uma noites
um corpo com quatro pernas em abraços
e mais nada
só véus e rendas grossas
e fotografias nas paredes de sempre
paredes brutas
persistentes
silenciadoras
e a serem a casa que eu queria

fui feito do ruído de quilómetros
do asfalto das viagens
deliciosamente intermináveis
onde a robustez eras tu
enquanto os meus olhos flutuavam
sob os telhados e o céu e as estrelas sem luar

fui feito de areia a estender-se até ser mar
e um barco às rodas
em desafio pra lá das ondas pra lá das rochas pra lá da verdade
um teatro de sombras que se mostram ao anoitecer
o encontro entre os lábios
o veneno do meu querer.

19 outubro 2016 : 02.01

terça-feira, 31 de maio de 2016

Anatomia de um corpo igual

o corpo é feito de aço, betão e diamantes
coroado com um bouquet de outras pedras preciosas, gigantes
lá dentro só o eco vivo das estrelas mais brilhantes
que lhe desabrocha na boca como meias-frases hesitantes

formam-se, completas, p'ra lá da Noite e das horas irritantes
são feitas de cheiros, ruídos e luzes que se mexem, vibrantes
são feitas de quase-amor e do luto nas duas mãos sangrantes
são feitas do sal de um lago com a vontade de mil navegantes

cristalizam por detrás dos olhos, onde as maravilhas são abundantes
são o peso maciço, em coágulos pelas veias rastejantes
são o hino invertido a todas as direcções vacilantes
são a vitória do quase-por-ser, mas não é, por um instante.

31 Maio 2016 : 19.20