quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Homólogo.

Fugiste de casa e não soubeste em que mar te deixaste mergulhar. Tinhas a cabeça coroada de espinhos como os que te apertavam no peito. Quiseste gritar mais alto que todas as regras que te regulam os passos. Quiseste gritar mais alto do que tu.
Tinhas o andar decidido de quem procura o que não sabe. Na cara o espanto de um mundo novo. O meu. Toquei-te para que a tua queda não fosse solitária. Uma queda a um inferno que não te contaram, onde os cadáveres ainda se riem dos seus pecados, num lume que só acende mais o desejo de tomar alguém. Nem sabia de onde vinhas, o que eras sequer. Tinhas as mãos limpas demais. Um olhar demasiado brilhante. E tens razão quando dizes que não soube lidar contigo.
Um novo encontro. Mais perto. Encontrei-te a suavidade do beijo e o teu corpo frio para abraçar. Aqueci-te mais do que a mim, enquanto me contavas histórias de amor que nunca foram escritas. O teu corpo estava dividido e tinhas a alma arranhada. Ardiam-te os olhos enquanto me inundavas de sensações adormecidas, esperanças que me esqueci de ter. Eras igual a mim quando eu o fui. Viciei-me no encanto de todos os laços que te atavam o coração.
Levei-te numa viagem onde conheceste novos prazeres, novas maneiras, novas pessoas. Quis que te enraizasses aqui também. Quis te ver crescer, mas ainda te pesam as lembranças do teu único amor. Se fosse eu a destruir isso, destruía o que mais gosto de ti.
Por isso voa. Agora já sabes como voltar ao meu peito.
30 Janeiro 2008 : 02.26

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Fábula.

Era uma vez uma casa de telhados duros e janelas opacas e fechadas. Guardava os fumos numa nuvem negra e brilhante e o papel de parede caía agarrado ao estuque. No chão, abriam-se poças de chuva azeda, infestada de um cheiro desagradável.
Às vezes, enchia-se de corpos de várias formas e feitios, adornados com jeitos e idiossincrasias únicas. Corpos-mutantes, numa mistura entre felinos e humanos, de garras compridas e olhos pequenos. Fundiam-se. Orgias singulares de quem vive sem sons no peito. Banquetes de luxúria abrasiva onde a pele era arrancada sem vestígio de sangue possível. Delícias de um mundo tão grande e reservado, onde só entra quem souber respirar melhor. Um mar de cadáveres, num suor de sombra rente à boca seca de novas palavras.
As divisões transbordavam de ecos vibrantes e o chão era de tapetes estranhos, um veludo invulgar que arranhava como unhas mal limadas.
Um dia ouviu-se um grito e as portas abriram-se de repente. Espalharam-se passos apressados e deixaram um murmúrio para trás. Apenas um murmúrio violento no lugar da cama.
E os dias passaram, com horas a mais no mesmo relógio. E as distâncias, essas, eram longas demais para se medirem.
Cantaram os corvos, ainda ao longe, que haviam de ruir a casa, em pétalas de mil cores e cheiro a citrinos frescos, e que me iriam tatuar sorrisos no canto dos lábios. Um dia. Quem sabe.
15 Janeiro 2008 : 02.34