sábado, 30 de março de 2013

Alina, a francesa.

Apareceu de repente, calada. Descalçou as sandálias de pele escura e escondeu os pés na relva. A saia destapava-lhe os tornozelos, de vez enquando, e tinha como padrão todas as flores que ainda não floriram nesta altura do ano. Aconchegou-se no xaile vermelho e tirou um cigarro da bolsa. Arranjou uma madeixa acobreada do cabelo, que estava desalinhadamente apanhado, a lembrar um bouquet florido a condizer com a saia. Acendeu o cigarro e deixou que o Tejo lhe enchesse os olhos. E tudo se calou. Nem pássaros, nem cães, nem árvores ou gente se mexeu. Deixava escapar o fumo pela boca como se nunca tivesse vontade de o aguentar. E os olhos dela enchiam-se cada vez mais de água. No fim do cigarro, pousou a bolsa no chão e arrumou as sandálias dentro dela. Uma brisa atreveu-se a atravessá-la e foi quando ela olhou para mim e também ela me atravessou. Sorriu por um segundo e voltou-se de costas de novo. Avançou para o muro que cercava o jardim e subiu-o. Abriu os braços como se abraçasse mais do que podia. Saltou. E tudo ganhou vida outra vez.
30 Março 2013 : 21.09

segunda-feira, 25 de março de 2013

Chá a Santa Clara.

um chá apressado
como quem pede uma benção de última hora
um chá só para aquecer por dentro
um chá só para aquecer
um chá só
só um chá
um chá sozinho
estou sozinho
mas estou quente
aliás, a aquecer
a esquecer
já esqueci.

24 Março 2013 : 18.50

domingo, 24 de março de 2013

E se o meu corpo fosse de lenha a inflamar com qualquer faísca?
E se o meu corpo fosse de pedra que arrefecesse depois de todas as tardes?
E se o meu corpo fosse só ar a depender da força da mínima brisa?
E se o meu corpo fosse o mar a esmorecer a sua vontade tsunamica?

24 Março 2013 : 06.59

quinta-feira, 21 de março de 2013

Dia Mundial da Poesia.

Ser poeta nada tem a ver com altura, nem volume ou simetrias.
Ser poeta nada tem a ver com rima ou cantiga.
Ser poeta não é fazer poemas e muito menos escrever.
Ser poeta é olhar de dentro para fora e perceber que temos todos a mesma forma nos ossos.


21 Março 2013 : 18.02

segunda-feira, 18 de março de 2013

P

Tens uma ancôra dentro do peito e nos ossos guardas infinitos grãos de areia. Viajas sempre connosco às costas, por mais agitado que esteja o mar. Deste-me os teus olhos para que também eu consiga decifrar-te os mapas e descobrir os tesouros que enterraste em mim. E agora eu vejo: sempre tive saudades tuas, de me segurares na água no verão e de me mostrares todos os castelos do meu país. Coraste-me um príncipe logo à nascença, porque é real o sangue que partilhamos. És um herói todos os dias e nunca pareces cansado demais. Acima de tudo, tens sempre tempo para falar comigo. Sempre! Não há lugar melhor do que a imensidão que é o teu abraço. Às vezes esqueço-me que apesar de ter crescido ainda caibo tão bem ao teu colo. Gosto de sair de casa com os teus perfumes e de pensar que te trago ao pescoço. Mas já estás em todo o lado do que eu sou. Por dentro e por fora. Por isso, Pai, acho que mereces muito mais que um dia. Mereces a minha vida toda.
18 Março 2013 : 02.34

quarta-feira, 13 de março de 2013

Prato do dia.

As pessoas que almoçam consigo próprias devoram-se entre o rissol de camarão e a sopa. É quase como um acompanhamento que enche por si só. Enche, enfarta, entope. Deixam-se implodir lentamente, com os bracinhos deitados numa nesga de sol sobre a mesa. Alheios às buzinas lá fora, alastram as olheiras, enrijecem os cabelos, reduzem a boca a um corte cirúrgico imperceptível. Entregam-se, sem luta, num delicioso prazer autofágico. Membro a membro, músculo a músculo. Mmmm! As pernas são as primeiras, antes que apareça a vontade de mudar de sítio. Os braços antes das vísceras, começando pelos dedos. Por último, todo o recheio da cabeça, que apesar de pouco é o mais saboroso. Só não comem os olhos, que as cataratas, miopias e outras deficiências na capacidade de focar deixam-nos demasiado azedos. No fim do banquete, deixam uma carcaça de pele e pêlos esticada na cadeira. O telemóvel também vai, junto com o café.
Posso pagar com multibanco? Olhe, esqueça que também acho que comi o cartão. Ponha na conta que eu pago amanhã. Tenha um bom dia.
Arrotam de boca cheia e limpam a boca à saída.
Acho que comi demais.
13 Março 2013 : 02.20