quarta-feira, 14 de maio de 2014

ensaio sobre uma vidinha normal

ora
não queria eu outra coisa
era só isso
isso e pronto
estava mais que satisfeito
estava mesmo mais-que-satisfeito
que é o auge de ser normal
é o nirvana do ser normal
estar satisfeito
um pouquinho para o estar excelente
mas isso nem interessa
e é herege quem se atreve a dizê-lo
olha, olha
a querer por em causa toda a estabilidade
do sofá todo equipado
de conforto inigualável
aliás
do conforto em hipérbole
a convidar a toda a hora
por mais um carinho rente ao pescoço
enquanto se vê a novela pós-jantar
ou a bola
nos dias em que ele,
o sofá,
assume o comando
e me adormece entre os seus braços
de sofá
os seus, portanto.

ter uma vida normal
ter uma vidinha normal
ter uma filhinha da puta de vidinha normal
pronto.
era isso e saberia que era feliz
bastava-me compartimentar a minha garagem do dia
em pequenininhas divisórias
que se encaixavam numa máquina
que só rodava
rodava e rodava e rodava e rodava
rodava e
não parava de rodar
a mostrar casinha por casinha
acordar
tomar banho
conduzir nas infernais manhãs lisboetas
trabalhar trabalhar trabalhar trabalhar
e
voltar a conduzir nos bestiais pôres-do-sol lisboetas
e chegar a casa
casar com ela
nunca mais a largar
nem trair
nem desdenhar do cotão que acumula nos cantos
só querer entrar nela
e ficar lá mais um bocadinho
a aproveitar o quentinho
de estar aconchegadinho
hmmm
e o seu cheiro
a caramelizar-se nos meus seios
nasais
a dar-me vontade e dar-me
mais vontade
de lamber o
delicioso jantar
a aquecer no forno
só dois minutitos.

pra quê pensar noutras coisas
fica quietinho
sossega
chiu
Calou!
lindo.
era só isso que eu queria mesmo.
e depois morrer de tédio
Três segundos à frente.

amén.
14 Maio 2014 : 20.47

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